A sociedade como a compreendemos, esta gigantesca cadeia de relações humanas, foi intencionalmente criada graças à aceitação do pacto social, onde incrivelmente os seres humanos passaram renunciar sua animalidade natural, seu estado selvagem no qual pertenceram durante milhares de anos, para o estado civil, onde a convivência passou a gerar mais bônus do que o estado de todos contra todos, caracterizado pela vida pré-sociedade.
Ressalta-se aqui a importância do pacto para que fosse possível viver socialmente. Para que a teia social fosse viável, cada individuo teve que ceder, em certo grau, nos seus desejos naturais. Antes de viver em sociedade, o homem era um animal mais instintivo do que propriamente racional.
Neste aspecto, poderíamos relacionar a estrutura freudiana do aparelho psíquico humano, ordenado em Id (dimensão responsável por armazenar e operar os desejos mais intensos da natureza humana, como a sexualidade e o instinto de sobrevivência), outra dimensão denominada Ego, essa é uma dimensão que dá à mente humana a real percepção de realidade, de entendimento do próprio eu, onde se aloja a identidade do sujeito com tal, individual e ciente de si. Ainda completando a terceira parte do aparelho psíquico humano, temos o Superego, parte importantíssima, haja vista ser ela a responsável por impor ao Id e ao Ego o parâmetro do possível e também do indevido socialmente.
Duas pessoas se cruzam numa rua, uma tem pela outra um intenso desejo sexual, tal desejo é pura pulsão do Id, o ego daquele que deseja alimenta a possibilidade de ali mesmo articular uma relação de sexualidade, mas o Superego entra no jogo e ordena a imediata racionalização destes impulsos, mostrando àquele que deseja que a outra parte não pode meramente ser um objeto de seus impulsos, ela também precisaria desejar, para que o ato fosse deliberadamente consentido entre ambos. O superego é o freio moral do instintos naturais do ser humano.
Mas onde entraria em todo esse texto que se constrói até aqui o problema do relacionamento abusivo? Pois bem, quis propositalmente fazer essa contextualização histórica para evidenciar que a vida em sociedade só foi possível depois que os seres humanos abriram mão do seu mundo individual marcado pelo Id e pelo Ego para uma realidade em que fosse mais importante o interesse coletivo, onde nasceria o entendimento de bem comum, berço originário da concepção de política.
Trazendo todo este debate textual para o universo das relações a dois, obviamente que na atual conjuntura histórico-social, não necessariamente relação a dois seria homem e mulher, mas toda e qualquer união afetiva entre duas pessoas de qualquer gênero, faz então importante discutir o pacto de convivência.
Só é possível a convivência saudável entre duas pessoas se as partes compreendem com clareza o pacto dentre elas necessário para tal vida a dois. Neste momento inicial há também um problema muito crucial, o imperativo de cada ego, ou seja o egoísmo de cada um no jogo da vida entre ambos.
A porta aberta para o relacionamento abusivo é a normalização do grito, da impaciência com rotinas cotidianas, da indiferença pelo ato da escuta, pela insensibilidade ao problema do outro como suposta besteira.
O relacionamento abusivo caracteriza-se acima de tudo pela unilateralidade da verdade, pelo dogmatismo das certezas que o outro tem de si mesmo, sem sequer abrir mão do seu excesso de ego mediante aos desejos que alimentam em sua consciência.
Relacionamento abusivo é toda forma de imposição de verdades que o convém e o beneficia, ainda que sorrateiramente sob o manto da religiosidade e da moralidade, contudo sempre a serviço da geração de interesse daquele que a pratica, desconsiderando a essência da vida a dois: renúncia do egoísmo.
Vale ressaltar que, quem vive num relacionamento abusivo, normalmente um dia iniciou com alguém uma relação de amor ou até mesmo paixão e, supostamente, o abusador se transformou, contudo, normalmente todo relacionamento que tem potencial futuro de ser abusivo, já carrega em si o germe da ignorância, tais sinais costumam ser desprezados em razão da emoção que envolve o relacionamento. Vale muito a pena se perguntar, em cada inicio de relacionamento, eu conheço de fato a essência do outro ou conheço e me apaixonei pela personagem que ele criou para me cativar? Ou ainda, pela personagem que eu mesmo criei para alimentar minha ilusão de amor?
Psicanalista, filósofo, palestrante, professor. Especialista em Neurociência e Filosofia Contemporânea.
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